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Horror Plenui 1.0

“Uma estrada de terra. Uma árvore. Entardecer.”

Esperando Godot de Samuel Beckett

 

Como lidar com a frieza aparente das máquinas, com a ordem binária somente traduzível pela razão, do cálculo duro, invariável? Como esvaziar de sentido o sensível do mundo? Há sim, há sim beleza na resolução matematizada do universo. Disso nos fala lindamente Mário Pedrosa ao apontar vasos comunicantes entre ciência e arte. Onde, cada qual a seu modo, compartilha o reino da criação, diz ele, onde seus praticantes ficariam entregues “ao prazer da pura especulação.” Isto é poesia. Descuidar deste domínio é descurar do que há de mais belo na mente humana: criar, compreender e dar sentido à vida.

 

Estes são os mesmos motes que impulsionaram, desde sempre, Flavya Mutran em sua longa caminhada como alguém que ama e persegue imagens. E de tanto amá-las, de tanto persegui-las, sempre as provocou, sempre as escandiu ou colocou em cheque seus estatutos. Do ontem-memória, das interferências analógicas da superfície do acetato fílmico, onde ranhuras, escritos feitos à mão desassossegaram o fim previsível de seu significado primeiro, ao hoje-agora, no qual imagens intangíveis do universo virtual somente se tornam tangíveis através da codificação de bits e interfaces que as podem revelar. O desassossego tornou-se impulsos elétricos. Uma estrada de terra. Uma árvore. Entardecer.

 

O antigo pavor ao vazio, o horror vacui, talvez tenha sido substituído na nossa atualidade pelo horror ao pleno, ao que poderíamos denominar de horror plenue. Ao repleto, ao transbordante, respondemos com o desejo íntimo de amainar o gigantesco caudal informacional em que estamos mergulhados. Pleno ou vazio, o humano padece com a falta de sentido. Necessitamos dos entremeios, do entre. Diante do estonteante tráfego de dados a que somos submetidos, vemos surgir Pozzo cego, Lucky mudo. Cegueira e mudez. A desmemória, termo fundamental para compreendermos as questões aqui propostas, decorre justamente destas condições incômodas: cegueira e mudez. Da invisibilidade e incomunicabilidade contidas nela e, por conseguinte, da pulsão incontida de visibilização e comunicabilidade além e através dela.

 

O projeto ARQUIVO 2.0 trata justamente do atravessar deste esborramento, de como podemos lidar com uma quase-memória - algo que nunca se estabelece por completo -, ou de uma memória que tende eternamente a esvair-se: “Desmemórias fotográficas”. Desmemória aqui, é esquecimento ou impossibilidade de se construir na totalidade memória?

 

Fechar e abrir os olhos, perceber imagens. Tocá-las, ouví-las. Decodificá-las. Testemunhá-las. Podemos senti-las no ambiente expositivo proposto pela artista. É alentador. O corpo todo vibra em busca da imagem, se locomove pelo espaço, analisa, para e escuta. A chave está na mente, no jogo de reconstrução da inteligência e da sensibilidade. Imaginação. Através destes murmúrios somos capazes de novamente formar imagens. Recompô-las, retirá-las da latência de pulsação simplesmente maquínica. Palavra por palavra, sentido por sentido, imagem por imagem: palavra-sentido-imagem. Uma estrada de terra. Uma árvore. Entardecer.

 

Aqui estão imagens consagradas pela história da fotografia. Assim como, aquelas que se confundem com o acervo mnemônico pessoal de cada um de nós. Vão e desvão desta arquitetura intrincada, não linear, fio de Ariadne e labirinto. Fragmentos de imagens que sugerem outras e outras. Friccionadas, postas à prova de sua verossimilhança, de sua autoralidade ou não-autoralidade, apropriação ou desapropriação, aleatoriedade ou intencionalidade de compartilhamento via Web. Todas. Todas se perdem na noite dos tempos e avançam às escuras para um futuro incerto. Não à toa a primeira imagem permanente que conhecemos nos apresenta o ponto de vista de uma janela, uma meta-imagem. Uma janela para ver e discutir sobre o próprio ato fotográfico. Ato insistentemente atualizado a cada nova volta do novelo, a cada dispositivo tecnológico que a sustenta viva, muitas vezes silente.

 

Chega o momento em que não apenas falamos de imagens fotográficas. A fotografia está na fala, no dizer, na codificação binária de uma publicação, na textura de uma placa de offset. Basta que possamos aprender a beleza que tudo isso nos apresenta. Aprender a ver novamente. Se percebida, veremos com todos os olhos uma estrada de terra. Uma árvore. Entardecer.

 

 

Armando Queiroz  

BH, outono de 2016

 

Artista visual, curador independente e mestrando do PPGAV da Escola de Belas Artes da UFMG.

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