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Flavya, querida

 

escrever esse texto para a tua exposição mexeu com todos os meus demônios. Deixo que eles falem contigo. Têm momentos em que sinto que fizeste esse trabalho para mim, para me tirar de centro, para me fazer lembrar, para exigir de mim um esforço de trabalho imaginativo. Uma infinidade dos pensamentos que me habitam tomaram forma em tuas fotografias. Elas me fizeram desver e rever o universo fotográfico. Porque essas obras todas são fotografias, né? Mesmo quando não são.

 

Comecei olhando a imagem aqui ao lado, cópia daquela do Boulevard du Temple feita pelo Daguerre em 1839. Ela eu conheço, primeira fotografia onde aparecem seres humanos. Aqueles dois sujeitos que ficaram parados no mesmo lugar, os minutos necessários para que suas silhuetas ficassem registradas. Aliás, muita gente também deve lembrar. Há mais de quatrocentas versões disponíveis na pesquisa do Google Imagem para ‘daguerre boulevard du temple’. Me fizeste pensar em todos que não apareceram na foto: pessoas, animais e veículos cujos deslocamentos, no ritmo da cidade do século XIX, não foram gravados na superfície sensível à luz e não podem mais ser lembrados. Desde o início, a memória da fotografia é composta de lembranças e esquecimentos. Só posso lembrar dos dois, engraxate e cliente, na esquina. Todo o resto precisa do trabalho da imaginação. É isso?

 

Imaginei também como essa imagem chegou aqui. Alguém com certeza reproduziu o original que está no Münchner Stadtmuseum, Alemanha. Será que a reproduziu em filme? Alguém escaneou? Será que fotografaram de um livro? Como foi parar na internet? De que site baixaste ela? Quantos deslocamentos antes de ir parar no teu computador para que pudesses manipulá-la e transferi-la para a chapa de cobre. Mais um deslocamento. O que se perdeu no meio desse caminho? O que sobrevive como essência que ainda me permite ver a fotografia? Desmontas, a partir de um pensamento agudo e gestos poéticos, os procedimentos através dos quais as imagens se reproduzem e se deslocam na sociedade contemporânea. Aliás, o processo todo do Daguerre, há 177 anos, começava com uma plaquinha de cobre, certo?

 

Minha vontade é de reproduzir tua imagem, ainda que saiba que alguma coisa vai se apagar. O cobre não vai ser cobre na minha fotografia, vai se parecer com ele, verdade, mas a informação vai mudar de suporte, vai tornar-se digital e pra ser vista como imagem dependerá sempre de um computador, de um aplicativo e de um dispositivo com tela. Ainda assim vai ficar parecida com tua chapa de cobre onde o pigmento preto cria uma imagem parecida com a do Daguerre. Quantas pessoas veriam isso se eu publicasse no Facebook? Não seria a mesma coisa que ver na tua exposição, mas tem uma amiga minha que mora em Paris que talvez gostasse.

 

Não vou contar teus truques, ok? Mas percebo que há uma costura elaborada, nem sempre visível, que conecta todas as escolhas que fizeste para a exposição existir desse modo. E o melhor é que ninguém precisa ver a linha e os pontos para entrar na sala e se deixar contaminar e se instigar pelas imagens. Dá para simplesmente olhar as paisagens desertas, os lugares vazios, as luzes e sombras. Há nisso suficientes possibilidades de ver. Bastam os olhos, as lembranças de tudo que já foi visto e, talvez, uma pitada de tempo e imaginação. E se eu disser que essas chapas metálicas que dão substrato às imagens foram originalmente usadas em serviços gráficos para reproduzir e fazer circular informação? E se o pigmento preto que constrói as aparências vier de máquinas copiadoras que reproduzem livros, revistas e jornais? Muda o que se vê?

 

Achei corajoso invadires essas imagens públicas, algumas clássicas, territórios de outros fotógrafos, baixadas da rede e recheá-las de esquecimentos. Tem uma poesia malandra nisso: roubar o que parece mais importante, fabricar desmemórias. Porque é justamente o que falta, os vazios e silêncios, que ativam minha lembrança e provocam a imaginação. Inútil o roubo, eu lembro! Mas vejo o quanto o substrato da memória é impreciso, movediço. Não lembro tudo, não tenho certeza, parece que sei, mas, sei lá! E tem, é claro, as fotos que não conheço. Para essas resta olhar e adivinhar, preencher as lacunas dessa memória que foi impressa em fotografia com o que acho que deveria ser.

 

Me deixou feliz ver que inventaste um laboratório de testes e que incorporas na exposição os lampejos da lembrança e da imaginação alheia. É daí que vem a poesia mais forte: do modo como essas fotografias invadem cada um, das respostas individuais que surgem no momento em que as pessoas são afetadas por elas. O relato que gravas quando as pessoas reagem às imagens te faz ver diferente? Vídeo feito de fotografia e voz, sem ter sido filmado, é vídeo? Quando as fotografias ganham o movimento e o tempo do vídeo elas deixam de ser fotografias?

 

Sofri para enfrentar a aridez dos teus fotolivros ilegíveis. Trabalhosos, repetitivos, incômodos, refratários a qualquer interpretação. Um erro impresso em muitas páginas. Como ler um livro composto de caracteres que não formam um texto e que só podem ser lidos como uma imagem que não faz sentido? A forma corrompe a imaginação. Me veio à mente o conto A Biblioteca de Babel, do Borges, onde o narrador afirma não ser possível "combinar certos caracteres […] que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas línguas secretas não encerrem um sentido terrível”[i]. Tenho certeza que há cópias dos teus livros nas prateleiras das infinitas galerias hexagonais.

 

Não sei se dá para entrar nos livros sem que expliques que provocaste um acidente de tradução. Como dar-se conta de que há uma fotografia em cada volume? Que uma imagem digital muito pequena, um thumbnail, gera esse tanto de informação quando lida por um aplicativo de texto? É preciso saber que toda informação digital funda-se em códigos binários, um denominador comum, matéria prima de tudo que circula hoje: fotografias, vídeos, palavras escritas, gráficos, sons e tudo mais. Que no mundo digital tudo tem que ser traduzido para essa linguagem de 'zeros' e ‘uns' e retraduzido de modo que possam ser vistos, lidos e ouvidos. Que dependemos completamente dos dispositivos e aplicativos para acessar o substrato impenetrável de que são compostos os arquivos digitais e suas memórias. Que os erros são fatais para legibilidade e compreensão. E se os tradutores falharem? Teus livros fazem com que eu me sinta frágil.

 

A sorte é que me fazes rir. Arranjas um programa que consegue traduzir texto em voz. Se não houver disposição para a empreitada de ler o incompreensível, acionando o QR-CODE da folha de rosto, pode-se ouvi-lo. Ainda incompreensível. Na voz pré-gravada com delicado sotaque de Portugal de uma leitora máquina, a única com a paciência necessária para transformar cada caractere em som e ler o livro ilegível. Estás de sacanagem, né? Será que vale a pena buscar ou inventar um tradutor que converta voz em imagem para, por fim, poder ver o que o livro contém?

 

Antes de ir embora pedes que eu acredite em ti e digite uma sequência interminável de um código hermético acreditando que o tradutor certo fará surgir uma imagem. Trabalho de máquina, literalmente. Ato de fé, preciso crer que nesses caracteres mora uma fotografia que preciso ver. Tradução reversa dos livros. Mas qual o volume de trabalho para formar uma imagem? Quanto tempo essa fotografia exige para aparecer? Qual fotografia vale esse trabalho e tempo? Desconfio que a urgência do contemporâneo vai dificultar a aparição.

 

Olho de novo a fotografia do Daguerre. Inquieto. Enxergo com clareza a grande mescla promíscua de informação onde ela está imersa hoje. Percebo as fronteiras entre linguagens que atravessaste, pra lá e pra cá, demonstrando que fazem pouco sentido hoje e que, ainda assim, mapeiam o lugar das imagens. Fui deslocado para o mesmo lugar onde estou, de onde não saí, e que não é mais o mesmo. Beijo grande.

 

 

Fernando Schmitt

Porto Alegre, Março de 2016

 

Mestre em comunicação, artista docente na ESPM-RS e curador independente.

 

 

[i] BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. (P. 77)

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